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A inovação de um universo popular - Por Thomás Lopes

, Leituras

Mais um ótimo texto do amigo Thomás Lopes Ferreira:
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Comparo o meu Brasil 
A uma criança perdulária
Que anda sem vintém
Mas tem a mãe que é milionária
E que jurou batendo o pé
Que iremos à Europa
Num aterro de café
Nisto eu sempre tive fé
(Noel de Medeiros Rosa)
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Como cultura popular, o samba atravessou o século XX, permanecendo vivo, se (re) fazendo e se (re) construindo ao longo de todo esse breve século. Cambaleou alguns passos anos para cá, outros passos anos para lá, mas apesar dos pesares, conseguiu contagiar uma quantidade expressiva da população brasileira.
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Por certo, esse dito universo tem algo para além de um simples estilo musical. Uma pista que nos ajuda a decifrar talvez venha da sua infinita diversidade, aberta por uma linguagem fácil e moderna, na qual instrumentos eruditos e populares sobrepõem sonoridades de distintas origens, e cuja harmonia e estrutura rítmica se entrelaçam formando um nó impossível de desatar. Um conjunto forte unido à composição de uma letra que insiste em relatar o cotidiano dos que labutam diariamente, formam as armas em punho que se apresentam no fazer tocar.
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Muito se fala do samba como algo do imaginário antigo, do que já se passou, e que deveríamos preservar. Ideia que se aproxima do folclórico, no qual o papel que nos cabe seria guardá-lo de maneira imutável, exaltando a construção parada no tempo que rejeita a inovação, fermento indispensável para a criação e consequentemente a perpetuação ao longo de décadas. Músicas e polêmicas retrataram esse imaginário do estático que volta e meia vem à tona através de alguma, sempre atenta, língua afiada.
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Essa concepção choca-se com a dita necessidade de inovar sempre. A máxima “mudar sempre para não mudar nada” pode encaixar bem aqui, ou ainda, a mudança sem critério, nem consistência pode acabar por rebaixar a qualidade de um significado. Paulinho cantou bem essa contradição e disse que “ta legal, mas não altere o samba tanto assim” e o mestre Wilson Moreira lança a chave para seguirmos entendendo: “Lua que não muda, não muda a maré. Você não se iluda, formiga miúda não morde meu pé” e mais tarde no mesmo Okolofé vai dizer: “Vou te contar rapaz, tem malandro enrolando demais, no shopping samba o barato tá no cartaz”. Aponta, assim, a necessidade do seguir em frente sem deixar a peteca cair.
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De fato o samba de pouco ou nada tem de folclórico, pelo contrário. O samba, ao menos como conhecemos, é moderno e recente. Marca o início de uma profunda modificação que esse rincão de terra enfrentou na passagem do séc. XIX para o XX. Décadas de vendavais, que conformou boa parte das grandes cidades brasileiras, criando o cimento para a tal da unidade nacional, que veio, não sem uma profunda divisão entre os que aqui se reproduziam. Por sua origem, linguagem e conteúdo ser colado com um período que deixou cicatrizes profundas, o fenômeno social, samba, se forja tão intensamente que o permite se (re) criar por diversas vezes, valendo-se para isso da imensa contribuição cultural que os tempos difíceis insistem em nos possibilitar.
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Era a segunda metade do século XIX e o vale do Paraíba comprimia em suas fazendas a maior parte de um povo escravo, que com ladainhas e lundus, tentavam explicar os motivos de uma vida sempre tão árdua, sob olhos sempre atentos de feitores, chibatas e troncos. Ouço por ai, que negro de senzala que ficava do lado do feitor, não tinha o direito de tentar decifrar mistérios numa roda de jongo e se caso o fizesse, a punição por parte dos outros de mesma cor, era drástica, mesmo sabendo-se que quem o punisse seria ainda mais punido sob mando do sinhô.
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Foi um dos encontros do povo negro brasileiro com a cidade, inaugurando a possibilidade de uma nova vida, agora, não mais sob os mandos e desmandos de um sinhô. Construíram vilas, bairros, casas e ruas carregando nas costas o peso do trabalho e na cabeça a esperança de ao menos ter uma oportunidade nunca antes imaginada. O rural se transformava, transformando o urbano, lançando as bases de um cotidiano de inspirações para as noites de batucadas após dias longos de suor derramado.
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Assim o Largo da banana, em São Paulo (atual estação Barra Funda do metrô), serviu de palco aos “artistas negros”, que depois de dias de carrego e descarrego dos trens, trazendo do interior a produção agrícola (e muita banana) reuniam-se em atos de impensável alegria. Mesmo com seus corpos já destruídos, os sorrisos e batucadas, danças e ritmos, influência rural de Pirapora, inauguravam o samba paulistano, que anos mais tarde um infeliz comentário tem a audácia de tentar sepultar.
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Bem ali no seio da selva de pedra que nascia, sob a sombra dos tijolos da Matarrazo, ainda em canteiros, “malandros” inventavam o futuro e criavam a imortalidade para uma região que anos mais tarde fundaria a Camisa Verde e Branco, como herança da Vila Carolina e das Perdizes.
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Enquanto isso, nas proximidades da cidade portuária fluminense, paredes de barro e pau a pique subiam, quintais batucavam e as tias baianas organizavam o que, a primeira vista, parecia caótico. A região da zona portuária e bairros próximos, depois batizada de Pequena África, será o primeiro reduto, onde a Pedra do Sal, local de tantas cicatrizes, e a Praça Onze serviriam de ponto de encontro para os primeiros blocos se arregimentarem.
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Logo surgem figuras emblemáticas que irão colocar mais lenha nessa fogueira carioca. Tia Ciata, uma das primeiras a organizar, Donga, mais tarde, é o primeiro a gravar e a turma do Ismael fundará a escola primeira no largo do Estácio. Pixinguinha dá continuidade ao uso de instrumentos eruditos, já “amansados” através da segunda metade do século XIX, pelo Choro Carioca de Joaquim Callado. Juntos em Caxangá e Oito Batutas, João da Baiana, Donga e Pixinguinha abusam do caldeirão popular, agora urbano, e se fazem (teimosos que são) a santíssima trindade da música popular brasileira.
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Anos mais tarde, já nas primeiras décadas do século que se abria, outros usaram estruturas do samba, para dar êxito a projetos, que de popular nada tinham. O samba ufanista é um exemplo, que apesar de bonito e cativante, como dizem alguns, socorreu, por diversas vezes, idéias que nem de perto se relacionavam com a vida desses que trabalham e se divertem a partir de suas próprias mãos.
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“Para mim, não tem problema, em qualquer canto eu me arrumo, de qualquer jeito eu me ajeito e depois o que eu tenho é tão pouco, minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás, mas (…) e essa gente ai, hein, como é que faz?”. Adoniram com sua sátira, nas décadas de 50, ridicularizava a idéia de progresso paulistano, denunciando suas contradições, dando continuidade ao olhar popular de um universo citadino já consolidado. Iracema, quem diria, vai morrer atropelada na contra mão de uma paulicéia já inundada de carros e bondes.
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Noel, duas décadas antes de Adoniram irá fornecer uma vasta crônica sobre a cidade maravilhosa fantasiada pela Belle Epoqué. Malandros, primas, boêmios, vagabundos e claro, trabalhadores farão parte de um novo modo carioca de se viver retratado nas centenas de musicas gravadas ou não; por esse que viveu intensamente e talvez por isso nos deixou tão cedo. O poeta da vila irá inovar também, trazendo a tona um convite para percebermos melhor o mundo que vivemos e suas constantes modificações no nosso dia a dia. “Baleiro, jornaleiro; Motorneiro, condutor e passageiro; Prestamista e o vigarista (…) E o bonde que parece uma carroça, Coisa nossa, muito nossa (…) O samba, a prontidão e outras bossas, são nossas coisas, são coisas nossas!”.
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A estrutura do samba está intimamente ligada ao lamento e à alegria, à critica, ao sorriso e à vivência do cotidiano de uma população pobre. O ser popular do samba, não impediu dele continuar sendo inovador, dele se modificar sem perder a imensa estrutura melódica que o originou, pois se vale justamente dela para sua continuação. Esse tal do popular me parece ser mais profundo do que o simples tocar na rádio todo dia, pois não se trata apenas de quantidade, mas sim, de um processo social que se transforma e se renova constantemente, bebendo para isso nos elementos que o possibilitou.
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O caminhar da historia não se faz com geometria, como explicam e querem alguns. Saber resgatar o que tem de rico, e com essa bagagem ser capaz de inovar, é um aprendizado que o samba demonstrou ter ao longo de toda a sua trajetória. Mesmo que uns concordem ou não.
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Final de primavera, início do verão, quando o sol já predomina sob nossas cabeças e as nuvens trazem as pancadas nos finais da tarde.
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 Thomás Lopes Ferreira

 

 
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