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A história do G.R.A.N.E.S. Quilombo

, Biografia Ilustrada

 

 

Muitos conhecem a luta do mestre Antônio Candeia Filho contra a descaracterização das escolas de samba que durante a década de 70 tomou conta dos desfiles e os sambista viam o samba se tornar um mero coadjuvante diante do gigantismo e dos novos valores que passavam a reger os desfiles durante o carnaval.

Descontentes, alguns sambistas de prestígio dentro da Portela, entre eles, Candeia, chegaram a redigir uma carta à direção da escola propondo mudanças e sugestões. Transcrevo na íntegra o texto de tal carta que encontrei no blog “Só Candeia”, um documento de grande valor para a história do nosso samba e que mostra a preocupação com os rumos que o samba tomava naquela época:

LEIA A CARTA AQUI

A carta acima não teve sequer resporta do diretor Carlos Teixeira Martins, ou Carlinhos Maracanã e, infelizmente, o final dessa história todo mundo conhece: O carnaval aos poucos foi se tornando um produto cada vez mais influênciado por grupos que pouco tinham a ver com as escolas e o samba perdeu sua tradição, tornando-se um mero acompanhante nos dslumbrantes e errojados desfiles, em que a figura do carnavalesco tornava-se mais importante que a dos compositores.

Candeia, em um trecho do livro que escreveu em parceria com Isnard Araújo, entitulado “Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz”, publicado em 1978:

“Os verdadeiros sambistas, ou seja, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, os passistas, os ritmistas, os compositores, as baianas, os artistas natos de barracão, são, hoje em dia, colocados em segundo plano em detrimento de artistas de telenovelas, dos chamados ‘carnavalescos’, ou seja, artistas plásticos, cenógrafos, coreógrafos e figurinistas profissionais. Ao substituirmos os valores autênticos das Escolas de Samba, nós estamos matando a arte-popular brasileira, que vai sendo desta maneira aviltada e desmoralizada no seu meio-ambiente, pois Escola de samba tem sua cultura própria com raízes no afro-brasileiro.”

Mas nem tudo estava perdido. Candeia, já decepcionado com sua escola do coração, recebeu de um amigo o pedido de ajuda na compra de instrumentos para um bloco, intitulado Quilombo dos Palmares, que pretendia fundar em um terreno baldio, na Rua Pinhará, no bairro de Rocha Miranda.

Foi aí que o que era uma simples idéia começou a se tornar realidade: a criação de uma nova escola de samba, livre das imposições que tomavam conta do carnaval, feita por pessoas que tinham na luta pela preservação do samba um dos seus maiores valores. Nascia então, no dia 08 de dezembro de 1975 (dia de Nossa Senhora da Conceição) o “Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo”, ou simplesmente, o GRANES Quilombo.

As cores da escola foram escolhidas pelo próprio candeia: o dourado, que representava o ouro e homenageava Oxum (que no sincretismo religioso é representada por Nossa Senhora da Conceição), o branco, que simbolizava a paz e a pureza e o lilás, que nas palavras de Candeia, era inspirado na beleza de uma flor e representava a África.

Seu símbolo, uma palmeira, em homenagem ao mais conhecido quilombo, o Quilombo de Palmares. Entre seus fundadores destacavam-se Waldir 59, (parceiro de Candeia em diversos sambas enredo feitos para a Portela), Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Élton Medeiros, Monarco, os jornalistas Lena Frias e Juarez Barroso, entre outros.

Na época, o recém-formado estudante de Letras, João Baptista Vargens, após um dos inúmeros encontros promovidos por Candeia para articulação da escola em dezembro de 1975, escreveu um manifesto de fundação, que exprimia de forma incisiva os propósitos e ideiais da nova escola que nascia:

“Estou chegando…
Venho com fé.
Respeito mitos e tradições.
Trago um canto negro.
Busco a liberdade. Não admito moldes.
As forças contrárias são muitas.
Não faz mal…Meus pés estão no chão.
Tenho certeza da vitória.
Minhas portas estão abertas. Entre com cuidado.
Aqui, todos podem colaborar. Ninguém pode imperar.
Teorias, deixo de lado.
Dou vazão à riqueza de um mundo ideal.
A sabedoria é meu sustentáculo,
O amor é meu princípio,
A imaginação é minha bandeira.
Não sou radical.
Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura.
Gritarei bem alto desafiando um sistema que cala vozes importantes
Que permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem.
Sou franco-atirador. Não almejo glórias.
Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio.
Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão.
Nada de forjadas e malfeitas especulações literárias.
Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais.
Eu sou povo.
Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem.
Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar.
Com minha comissão de frente digna de respeito.
Intimamente ligado às minhas origens.
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais:
Não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico.
Estou chegando…”

 

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O Jornal do Brasil anunciava, no dia 17 de dezembro de 1975, em uma reportagem de página inteira, o nascimento do Quilombo. Veja um trecho da reportagem de Juarez Barroso

“As escolas de samba cariocas agigantaram-se, deformaram-se à medida que se transformaram (ou pretenderam transformar-se) em shows para turistas. O tema é polêmico, tratado por quase sempre em tom passional. Deformação ou evolução? Será possível o retorno à pureza, ao comunitarismo dos anos 30, quando essas escolas se consolidaram? (…) O sambista Candeia, liderando outros sambistas descontentes com a situação, prefere responder de modo objetivo. E responde com a fundação de uma nova escola de samba, Quilombos, escola que terá sede em Rocha Miranda e irá para a Avenida mostrando como era e como deve ser o samba. (…) E continuava o sonho: ‘Uma escola em que tudo fosse feito pelo povo. As costureiras do lugar fazendo as fantasias. Não ia ter esse negócio de figurinistas de fora não. As alegorias também, tudo de lá mesmo, escolhido lá.’ (…) E uma coisa fica bem clara: Quilombos, mais que uma escola de samba, será uma escola de sambistas, um modelo para outras escolas, uma referência.”

Wilson Moreira relembra:

“Ele falou: ‘Wilson, eu vou fundar uma escola de samba. Você tá comigo?’. Eu falei: ‘Candeia, eu só não vou sair da Portela…’. “Não, não precisa sair da Portela, ninguém precisa sair de suas escolas. Como o Xangô tá com a gente, Elton tá com a gente, Clementina tá com a gente, fulano, beltrano, sicrano…, Jorginho Peçanha tá com a gente’. Jorginho do Império. Eu falei: Tá legal! Vamos fundar a Quilombo.”

Em 1976, em matéria para o jornal Última Hora, Candeia resume os propósitos do GRANES Quilombo:

– Desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira;

– Lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular;

– Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando as das escolas de samba, e as transformam em rentáveis peças folclóricas;

– Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira, destacando a importância do elemento negro em seu contexto;

– Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não corrompidos “pela evolução” imposta pelo sistema, possam cantar seus sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro.

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Outro fato interessante foi que a situação política do Brasil naquela época, em que a falta de liberdade imperava, mesmo com o regime militar já enfraquecido, favoreceu a capacidade que o Quilombo de Candeia alcançou de “aglutinar as pessoas”, funcionando como uma “válvula de escape”, “um lugar de resistência”, um Quilombo dos Palmares revivido. João Batista Vargens exemplifica o processo:

“Então, a ideia do Candeia e do grupo que o apoiou era salvaguardar isso, que é, na verdade, uma identificação com a cultura nacional. Em uma época em que todas as forças progressistas trabalhavam para aglutinar.

Essa era uma maneira de aglutinar as pessoas, não é? Foi por isso que a Quilombo conseguiu juntar 3.000 estivadores, ou juntar 3.000 ou mais trabalhadores da construção civil durante as suas festas lá. E não era só samba e comida. Havia palestras, exibição de filmes, debates. Esse espaço você não tinha nem dentro das universidades, porque havia uma repressão. Então era um quilombo mesmo, um lugar de resistência.

A coisa não foi tão elaborada conscientemente, não é? Mas, partindo das pessoas que criaram o grupo – isso a gente vê hoje, trinta e tantos anos depois –, era um movimento… Na verdade, uma válvula de escape para aquilo que não se tinha: um, na universidade; outro, dentro do seu jornal; outro, dentro da sua escola de samba. Então, como o Quilombo dos Palmares, que aglutinou não só negros, todo mundo sabe disso, mas pessoas que estavam marginalizadas dentro da sociedade na época e foram para lá, para o Quilombo, porque lá tinha abrigo e tinha proteção.

E o escudo eram os grandes artistas que frequentavam, como Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clara Nunes. Essas pessoas foram importantes também, porque deram visibilidade à coisa, ao trabalho. E o Candeia, que, além das ideias, tinha o dia todo para ficar telefonando, desde o fornecedor de carne ou de cerveja até o artista, o amigo, o jornalista para divulgar. Ele tinha tudo na mão dele”.

Assista a um trecho do documentário “Eu Sou Povo”, de Bruno Bacellar, Luis Fernando Couto e Regina Rocha:

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Muitas foram as dificuldades enfrentadas para que o Quilombo pudesse desfilar no carnaval de 1977. Mesmo assim, devido ao empenho de seus componentes, a escola não só se apresentou pelas ruas dos subúrbios de Coelho Neto e Acari, como fechou o carnaval na Avenida Presidente Vargas. O impacto parece ter sido positivo, como sugerem os comentários da imprensa:

“A presença da Escola de Samba Quilombo foi, na verdade, a grande novidade no desfile de campeões do Carnaval 77, fechando com chave de ouro uma festa que teve tudo igual aos anos anteriores. […] Com um contingente de 400 pessoas, dentre as quais os astros da música popular Paulinho da Viola, Candeia, Martinho da Vila, Xangô e Clementina de Jesus, diversos intelectuais e sambistas de outras agremiações, Quilombo, com suas fantasias tricolores, branca, lilás e dourado, quase rouba o espetáculo, que ficou por conta da Beija-Flor e seu Carnaval-Evolução, e do Canarinho das Laranjeiras. […] Desfilando livre e descontraída pela avenida, sem esquemas, imposições, figurinos ou estrelas, despreocupada com novas fórmulas de 70, apresentação musical ou com contagem de pontos, a escola de samba Quilombo mostrou, ontem, o verdadeiro papel de uma escola de samba e apresentou seu Carnaval de 77 visando apenas realizar a mais genuína festa brasileira”. (A Notícia, 23/2/1977).

“A escola desfilava sem subvenção e carregava apenas duas faixas fazendo alusão ao “samba sem pretensão” e ao “samba dentro da realidade brasileira”. Para os mais atentos, esta diferença tomou outra dimensão nas cinco horas que antecederam o momento do desfile. Na Rua General Caldwel, esquina com a Presidente Vargas, o Quilombo reunido, tendo Candeia ao centro, tocava samba-de-roda, lutava capoeira e dançava o jongo – dança dos escravos – quase esquecido da festa de que participaria em breve” (Movimento, 7/3/1977).

Para se ter uma idéia da importância de Candeia na organização e estruturação da escola, basta darmos uma olhada no depoimento de Pedro Carmo dos Santos, um dos primeiros integrantes do Quilombo:

“Em 77, tinha o Candeia, o Quilombo tinha uma facilidade tremenda. Ele chegava e falava assim: ‘O que é que está faltando aí?’, para os chefes de alas. ‘Está faltando o quê?’ Ou para as costureiras. E eu falava: ‘Para a Ala das Crianças e para a Ala das Baianas está faltando pano.’

O Candeia saía e, quando ele voltava, o carro cheio de peças de pano. A gente: ‘Comprou aonde?’ ‘Comprei?! Eu sou o Candeia, rapaz! Eu sou o Candeia! Eu ganhei. Foi doado para o Quilombo. Ia em São Paulo e trazia peças de bateria do Quilombo, trazia essas coisas todas. Era tudo facilidade. Tinha as costureiras, tinha as máquinas… A esposa dele que comandava tudo, a dona Leonilda. Fazia aquelas feijoadas, aquelas comidas, fazia festival de chope, para angariar fundos, para o Quilombo fazer alguma coisa”.

O desfile de 1978 foi especial: marcava a última participação de Candeia no comando de sua escola. O samba enredo foi composto por Wilson Moreira e Nei Lopes. “Ao povo em forma de arte” é uma obra prima, que demonstra a preocupação do sambista em preservar sua cultura e seus valores em um tempo em que tudo parecia se perder.

Quem esteve lá pôde presenciar a emoção do Casquinha que às lágrimas dizia: “Tá tudo direitinho. tudo certinho. Parece a Portela de antigamente”.

 

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Quilombo pesquisou suas raízes
E os momentos mais felizes
De uma raça singular
E veio pra mostrar essa pesquisa
Na ocasião precisa
Em forma de arte popular

Há mais de quarenta mil anos atrás
A arte negra já resplandecia
Mais tarde a Etiópia milenar
Sua cultura até o Egito estendia
Daí o legendário mundo grego
A todo negro de “etiope” chamou
Depois vieram reinos suntuosos
De nível cultural superior
Que hoje são lembranças de um passado
Que a força da ambição exterminou

Em toda a cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
E o negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes
Por isso o Quilombo desfila
Devolvendo em seu estandarte
A história de suas origens
Ao povo em forma de arte

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Panfleto divulgando o samba do GRANES Quilombo, em 1978
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Em novembro de 1978, Candeia partiu de repente. Foi sambas com seus companheiros lá no céu. Deixou um legado que representa o que há de mais puro no samba, suas canções hoje são entoadas como hinos em rodas de samba, inspirando jovens que tomam sua luta pela preservação do samba e da cultura negra com um ideal a ser seguido e propagado.

Alguns, à primeira vista diriam que a luta de Candeia e do Quilombo foi em vão. Hoje o carnaval é um produto de exportação, escravo da mídia, que movimenta quantias milionárias, o samba corrido, sem a beleza das letras e melodias dos saudosos compositores.

Mas, quem gosta de samba pode perceber em cada roda, em cada blog, em cada fórum na internet, que a luta de Candeia nunca foi em vão, que o samba ainda hoje tem seus defensores, que não deixam desaparecer sua tradição, sua belez e riqueza, em que têm em Candeia uma fonte de inspiração, que nos dá forças para mantermos a chama sempre acesa.

Salve Candeia!

 

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