Entrevista com Cristina Buarque
, Cristina Buarque
“O quarto exalava aquela impessoalidade de flats e residences e coisas afins. Tão pequeno: o banheiro logo em frente à porta, o sofá, um armário, frigobar e, após dois degraus acarpetados, o quarto com duas camas de solteiro. No fim de tudo, no fim do quarto, a sacada. A menor sacada do mundo. E nela, Cristina. Só cabia ela, Cristina Buarque. A primeira mulher a ser entrevistada pelo Gafieiras abriu a porta com poucas palavras, estava acompanhada do filho Zeca e, dormindo, da filha Ana. Tentei em vão pescar algum som que me fizesse lembrar da primeira vez que a ouvi cantando – em um curto espaço de tempo conheci “Chorava no meio da rua” (Paulo Vanzolini) e “Sem fantasia” (Chico Buarque) -, mas havia passado cerca de 35 anos das gravações originais e quem disse “olá, tudo bem?!” era outra, falando era outra.
Aquela voz doce, pequena e sentida, que entoava versos como “ai meu deus, que ingenuidade a sua!”, não estava lá. Trajando shorts, aparentemente à vontade, Cristina seguiu com poucas palavras. Não parecia particularmente interessada em falar ou pensar sobre sua carreira. Reservada, talvez imaginasse que fôssemos perguntar do irmão Chico. Como a pergunta não veio, e nem viria, relaxou. Todos relaxamos. E a voz doce e pequena de tantos sambas surgiu rodopiando pelas paredes impessoais do quarto. A filha que dormia, acordou, o domingo que ia fechar, abriu, os cigarros de filtro branco queimaram e surgiram as inescapáveis cervejas (“Meio-dia já rola!”). O resto é música.”
Parte 1 – A Aracy ouvia música clássica em casa e era amiga do Di Cavalcanti!
Ricardo Tacioli – Cristina, como é que foi o Boteco do Cabral em homenagem a Aracy de Almeida?
Cristina Buarque – Foi muito bom. Ela tinha um bom gosto, um repertório fantástico. Eu e a Marcia cantamos. Foi até difícil escolher as músicas para o show; existe uma exigência do SESC que diz que tem que se ter as músicas mais conhecidas.
Tacioli – O SESC faz essa exigência?
Cristina – É, tem isso, mas nós intercalamos as famosas com outras não tão conhecidas, que não fizeram sucesso, mas que são bonitas. A Aracy [n.e.1914-1988] era uma figura muito engraçada. O Sérgio Cabral a conheceu bem; ele contou histórias, mas muitas delas ele não podia contar em público. Contou somente as mais leves. [risos]
Tacioli – Que músicos estavam acompanhando vocês?
Cristina – Estava o pessoal daqui, o Miltinho, o Edson Alves, o Oswaldinho da Cuíca e o Cebion.
Tacioli – Você chegou a conhecer a Aracy?
Cristina – Muito pouco. Eu a vi num bar naquela época, não me lembro se foi perto do Teatro Paramount, mas ela estava num bar. Assisti também a alguns shows, mas nunca conversei com ela.
Tacioli – É uma das coisas que você lamenta?
Cristina – Eu lamento muito. Tenho a maior pena. Eu era muito nova, mas me metia em música. Eu morava em São Paulo, mas o pessoal do Rio vinha para cá de vez em quando. Então, não calhou de eu estar com ela em algum lugar, alguma festa, uma esbórnia assim. Não aconteceu.
Zeca Ferreira – Em festival ela não aparecia?
Cristina – Foi numa coisa dessas assim, não sei se era a Bienal do Samba, se era um show no Teatro Paramount, não lembro o que era. Só sei que ela estava no botequim ao lado, acho que tomando refrigerante, não estava mais bebendo, não! Ela estava meio sozinha, meio quieta, alguém falou alguma coisa, mas o papo não foi adiante. E eu só olhando, nem cheguei perto.
Tacioli – Como ela era vista pelo meio artístico nessa época, Cristina? Infelizmente depois ela ficou muito caricaturada como jurada de programa de auditório.
Cristina – Programa do Silvio Santos, né?! E é como as pessoas lembram dela, aquela criatura enfezada.
Daniel Almeida – É, parecia um personagem.
Cristina – As pessoas que conviveram com ela, que a conheceram, falavam que ela morava numa casa no bairro do Encantado, no Rio, e tinha vários cachorros. Era muito boa, meiga e amorosa com as pessoas. Ficava ouvindo música clássica em casa, que era limpíssima, muito bem decorada e cuidada, com cristaleira e quadros de gente famosa! Ela foi amiga do Di Cavalcanti [n.e.1897-1976]! Ela tinha esse palavreado, que era uma coisa engraçada, com muita gíria e palavrão, mas era uma pessoa muito doce. Por isso tenho pena de não ter convivido com ela. E chegou uma hora em que não queria mais cantar, queria só ficar nesse negócio de programa de auditório, porque era seu sustento. Naquele tempo, a televisão e as gravadoras até davam mais espaço para este tipo de música. Fico pensando se ela estivesse viva hoje como é que seria. Acho que foi a dificuldade de se fazer música boa que deu esse desgosto pra ela, apesar daquela época ser melhor do que hoje. Ela deve ter se deparado com algumas dificuldades e cansou. “Não quero mais cantar!” Parece que ela era muito bem tratada pelo Silvio Santos, ganhava uma grana legal. Mas mesmo assim, mais para o final da vida, ela fez uma coisa ou outra, como o programa de televisão com o Herminio Bello de Carvalho, que está recuperando os programas da TVE. Então, temos algumas coisas dela no final de vida, cantando uma maravilha, não com a mesma voz que ela tinha quando era nova, mas com interpretação muito bonita.
Tacioli – Você tem discos da Aracy?
Cristina – Lá no Rio existe um negócio chamado Collector”s [n.e. Site dedicado à música brasileira das décadas de 40 e 50 – www.collectors.com.br] que tem esses 78 rotações tudo em fita. A qualidade não é boa, é fita cassete. Comprei em fita tudo o que ela gravou em 78 rotações. Depois, um pesquisador amigo meu levantou o que ela fez em LP, pegou as fitas que eu tinha, e o que ele não conseguiu encontrar com uma qualidade melhor, usou dessas fitas mesmo. Assim, fizemos a discografia completa da Aracy de Almeida. Tenho isso em CD, que já deu uma melhorada no som, mas as gravações que eram muito ruins e não se acharam melhores, ficaram assim, ruins mesmo! São 16 CDs, numa média de 24 músicas. Isso é tudo o que ela gravou. Eu tenho isso!
Tacioli – E da Revivendo?
Cristina – Os discos da Revivendo já têm o som melhor, vêm com explicação e com as letras das músicas. Da Collector”s só vem a fita, nome da música e do autor. Mas a Revivendo tem tudo espalhado. Compro muita coisa da Revivendo, mas tem um disco da Aracy com Cyro Monteiro, daqui a pouco tem um da Aracy com não-sei-quem, e repete algumas músicas. Mas a qualidade é melhor, sempre. Cyro Monteiro, Aracy, Pixinguinha. Mas também fui perdendo muita coisa pelo caminho. Esse negócio de emprestar, nego não devolve, isso acontece muito. Mas a minha discoteca não é grande coisa, não! Tenho muita coisa porque vou comprando em fita. Em fita tenho o completo da Aracy, do Déo, do Cyro Monteiro. E quando fiz aquele disco do Wilson Batista comprei muita coisa da Collector””s. Tem muita coisa espalhada com o Quatro Ases e um Curinga, Anjos do Inferno, Roberto Paiva, Gilberto Alves, Odete Amaral. Tem muita coisa espalhada e não dá para comprar tudo, não.
Cristina – …, meus filhos me presentearam com um “fazedor de CD pirata” [risos], então agora fico fazendo isso. Dei de presente para um amigo meu o que sobrou do Wilson Batista. Um CD com coisas muito boas que sobraram do disco que fiz e que não entraram no álbum. Fiz o segundo e acabei gravando seis CDs só com músicas maravilhosas do Wilson Batista, umas 150. Nessa pesquisa do Wilson não cheguei a tudo, ao repertório completo dele, não! Ele tinha umas duzentas e tantas músicas, e muita coisa eu não encontrei.
Zeca Ferreira – E sem contar as que não estão no nome dele.
Cristina – Tem isso! Mas na Collector””s compro esses cantores mais conhecidos. Daí pintam cantores que gravaram dois 78 rotações, sabe assim?! Não vou achar isso. Quer dizer, se eu procurar muito até acho, sempre tem um pesquisador que tem. Mas do Wilson Batista deu muita música boa, cerca de 150. E não botei o que não gostei.
Tacioli – Tem planos para se fazer um outro disco?
Cristina – Plano para se fazer disco tenho um monte. O problema é gravadora. Isso aí é que é mais difícil.
Dafne Sampaio – O seu mais recente é o segundo do Noel Rosa, que saiu pela Kuarup, como o primeiro, não?!
Cristina – …, o primeiro tinha saído por uma gravadora francesa, depois venceu o contrato, e fizemos o relançamento pela Kuarup. E para esse segundo já fizemos direto. Mas é um disco barato de se fazer, somente voz e violão. O Henrique Cazes toca violão e conta as histórias.