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Nos tempos do Zé Espinguela

, Biografia Ilustrada

 Contam que a primeira competição entre sambistas que se tem notícia aconteceu na casa de um mulato jongueiro e pai-de-santo, chamado José Gomes da Costa, mais conhecido pela alcunha de Zé Espinguela. Figura lendária do samba carioca, morador de Engenho de Dentro, mas assíduo frequentador do Morro de Mangueira, fundou no ano de 1925 o “Bloco dos Arengueiros” ao lado de Cartola, Carlos Cachaça, e outros bambas.

Desse encontro, originou-se em 1928 – três anos depois – o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira. Foi em uma reunião ocorrida no dia 28 de abril de 1928, no Buraco Quente (Travessa Saião Lobato nº 21), na casa de seu Euclides da Joana Velha, que nasceu um dos maiores celeiros de bambas do Rio de Janeiro. Seus fundadores: Seu Euclides (Euclides Alberto dos Santos), Saturnino Gonçalves, Marcelino José Claudino – o Maçu, Cartola, Pedro Caim, Abelardo da Bolinha e Zé Espinguela.

Naquele tempo era perigoso fazer samba, tinha que disfarçar, senão vinha polícia e acabava com a festa e se bobeasse, ainda levava malandro em cana… Tornou-se costume fazer as rodas de samba em casas de macumba, que tinham licença da prefeitura pra funcionar. É claro que com o tempo a polícia descobriu o truque e começou a baixar nas casas de macumba. Segue um relato interessante do João da Bahiana:

“Por uma ocasião, passando pela Mangueira, apanhei Teresa, irmã do falecido Miná, uma crioula que tocava violão, mãe de Moleque Diabo, peguei o Aristides que também tocava violão e muitos outros instrumentos de corda e que depois andou muito pelo Catete. A Teresa do Miná saiu e fomos para a casa do Francelino, no Morro do Urubu, onde havia uma macumba.

Havia uma sessão e nós ficamos do lado de fora cantando samba e esperando acabar a macumba. Me lembro até que estava um frio miserável, era junho, época de São João, inclusive era festa de Xangô. Embora não participássemos da macumba, fomos servidos com uma bandeja de pão-de-ló, canjica e pão com manteiga. Quando terminou a macumba, a Teresa chamou a gente com um samba:

Acorda, acorda,
Quem está dormindo, acorda

Acorda, acorda,

A bença, a bença

Boa noite, boa noite

Era um tal de apanhar instrumentos, pandeiros, pratos com faca, que o samba estava começando. A Teresa estava tocando um violão e eu fiquei tentando tirar um samba. Aí me lembrei do delegado do 23° Distrito, Abelardo da Luz, que de vez em quando dava umas incertas na gente. Tirei um samba:

Cruz credo, credo em cruz
Aí vem o delegado
Abelardo da Luz

Temos pão-de-ló

Temos pão com manteiga

Você sai do samba

Já vou minha nêga

Quando o samba estava no melhor, bateram na porta dizendo que não adiantava fugir pois a casa estava cercada. Ninguém corre! Aí, por causa do samba, o homem colocou a gente da casa pra fora.

Fez a gente descer o morro com um frio danado. Nem chegamos a comer, a tomar café, coisíssima nenhuma. Descemos e andamos a pé, do Morro do Urubu até o 23° Distrito, que naquele tempo era em Madureira, debaixo de pau e bengala. E o delegado Abelardo da Luz obrigando a gente a cantar o samba sem parar. Tinha que cantar no ritmo. Ou cantava no ritmo ou levava bengalada.

Na delegacia, subimos a escada, o delegado chamou o Francelino e avisou: “outra vez, vocês vão ficar uma porção de tempo”. Foi dar umas voltas e a gente lá, morrendo de fome. Voltou e tornou a falar: “outra vez que você botar essa molecada dentro da sua casa e vir com essa vagabundagem de samba, eu boto você no xadrez. Não tem Nicanor do Nascimento, nem nada”. O Nicanor, na época, era o deputado que arranjava as licenças pras casas de macumba. E repetia: “É você no xadrez e a licença do lado de fora. No meu distrito não quero saber disso”.

João da Bahiana, que além do caso contado acima já se safou de uma batida policial por causa da dedicatória escrita em seu pandeiro, presente de um senador bastante influente.

Espinguela era Pai de Santo e nos fundos de sua casa em Engenho de Dentro, o samba acontecia… Muita festa, a roda de partido alto pegava fogo com um punhado de bambas. Numa dessas, o Zé Espinguela resolveu organizar uma disputa, que aconteceu no dia 20 de janeiro de 1929 e que viria a ser o primeiro concurso disputado entre escolas de samba.

Juvenal Lopes, um antigo mestre sala da Escola de Samba Deixa Falar, integrante da União do Estácio e que foi diretor da Mangueira durante os anos 60, fala sobre Zé Espinguela:

“Ele organizou um concurso na sua casa do Engenho de dentro, na rua Borja Reis. Compareceram representantes do Estácio, da Mangueira, de Oswaldo Cruz e da Favela. Me lembro que o pessoal do Estácio foi desclassificado porque apareceu de gravata e flauta. Foi até o Benedito Lacerda que apareceu com a flauta. O samba do Estácio era assim:

De que tanto choras
Se não se estás sentida

As lágrimas que vertes são fingidas

Eu tenho certeza
que não vou te perdoar
Chora meu bem, chora

O samba da Mangueira era do falecido Arturzinho Faria:

Eu quero é nota
Carinho e sossego

Pra viver descansado

Cheio de alegria, meu bem

Com uma cabrocha ao meu lado

O samba de Oswaldo Cruz era do Paulo da Portela:

Avante mocidade, é hora
Vamos fazer nosso progresso

Vamos deixar correr

A fama suburbana

Por todo esse universo

O samba harmonioso é lindo

E para ter maior valor

Vamos por em linha de frente

Para presidente,

O Mano Claudionor

No jornal “A Nação”, de 1 de março de 1935 (ano em que o desfile das escolas na Praça Onze passaram a ser oficialmente parte do programa de carnaval da prefeitura do Rio), Zé Espinguela confirma a veracidade do evento e também fala sobre a vencedora:

“Eu fui o primeiro organizador de concursos entre as nossas escolas. Foi em 1929. Realizei no Engenho de Dentro. Sagrou-se vencedora a Portela (na época Vai Como Pode), sabiamente dirigida pelo Paulo. Mangueira também apresentou-se pujante, tendo os seus sambistas Cartola e Arthurzinho apresentado dois sambas monumentais: “Foram beijos” e “Eu quero nota”.

Heitor dos Prazeres (autor do samba vencedor) conta que, apesar da portela ter sido escolhida como vencendora, Zé Espinguela teve de distribuir troféus a todas as escolas pra não haver confusão…

Espinguela foi amigo íntimo de Villa-Lobos, a quem, em 1940, Leopoldo Stokowski solicitou que reunisse os mais representativos artistas de música popular brasileira, para gravação de músicas que seriam apresentadas em um Congresso Pan-Americano de Folclore.

 

Zé Espinguela e Villa Lobos em um ensaio do “Sodade do Cordão” grupo carnavalesco fundado por Villa Lobos que tinha Zé Espinguela como grande colaborador

.

Villa-Lobos então convocou, além de seu amigo Espinguela, Pixinguinha, Cartola, Donga e João da Baiana. Em uma única noite em agosto de 1940, foram registradas, a bordo do navio Uruguai, quarenta musicas entre as quais haviam seis composições de Zé Espinguela. Dessas, apenas dezesseis chegaram ao disco, sob o título Native Brazilian Music – Leopold Stokowski. Zé Espinguela emplacou três:

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Macumba de Iansã (Zé Espinguela e Donga)
Cantam: Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá

Macumba de Oxóssi (Zé Espinguela e Donga)
Cantam: Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá

Cantiga de Festa (Zé Espinguela e Donga)
Cantam: Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá

Espinguela morreu cedo, em 1944, com aproximadamente 60 anos. Como grande poeta, sentindo que seu caminho estava chegando ao fim, Zé Espinguela profetizou a própria morte, e eternizou em versos seu amor pela Mangueira, escola que ajudou a fundar.

Dona Neuma, figura lendária da Mangueira, conta que ao pressentir a própria morte, Espinguela quis se despedir das coisas que tanto gostava na vida. Reuniu os filhos-de-santo, todos a caráter, foram para a ponte da Mangueira e se “armaram”. Segundo Dona Neuma, era tarde da noite e só se podia ouvir um surdo lento e os versos de um novo samba:

.

Adeus Mangueira (Zé Espinguela)

.

Bem que eu quero esperar
Mas existe um porém

Trago a minha memória cansada.

Esta triste melodia

Serve de último adeus

Adeus, escola de samba Adeus,
Mangueira, adeus!

Adeus,escola de samba adeus!

Eu vou partir chorando
Relembrando os versos meus

Que mais cedo ou mais tarde

É triste, é doloroso recordar

Mas a orgia vai se acabar.

Mangueira, adeus…

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Parte do texto foi trancrito do encarte do disco “A História das Escolas de Samba”
Comentários

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