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Samba de Sambar do Estácio: Histórico

, Leituras

 

 

Com a chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, os mangues de São Diogo passaram a não ter mais apenas o Rocio Pequeno como local seco no meio de seus alagadiços. Neles foi feito um longo e estreito aterrado que se estendia desde o Campo de Santana até a Bica dos Marinheiros (onde hoje fica o viaduto dos Marinheiros). Esse aterrado, futura Rua Senador Euzébio, passou a fazer parte do trajeto diário do príncipe regente, mais tarde rei, d. João vi, entre o Paço da Cidade no terreiro do Carmo (hoje, praça xv de Novembro) e a Chácara da Boa Vista, residência do príncipe em São Cristóvão. Chácara essa ofertada por Antônio Elias Lopes, grande traficante de escravos, naquele momento precisado das graças reais para amenizar problemas de seu negócio.
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O fato de ter sido atendido despertou a atenção de outros necessitados da complacência real. A rotina do príncipe o trazia de volta à chácara com noite fechada. A necessidade de iluminação foi a oportunidade para que alguns fossem lembrados. Por todo o percurso do estreito aterrado, ergueram-se marcos de pedra, distando 100 passos entre cada um deles, de onde pendiam lanternas de azeite sustentadas por varões de ferro. Imediatamente abaixo de cada uma delas, e bem visível, estava uma placa gravada com o nome do mantenedor de cada lanterna.
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Quanto mais um nome estivesse repetido, maior seria a possibilidade da lembrança real. Eram as únicas coisas legíveis em todo o trajeto.
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Chamou-se “caminho das lanternas”. Mais tarde, e a partir dele, os mangues foram aterrados formando a nova extensão da cidade. Inicialmente com o nome de Campo de Marte, com as primeiras construções abrigando a população de baixo poder aquisitivo, definitivamente denominada Cidade Nova..

 

Lima Barreto a descreveu com olhos de quem conhecia a miséria e a ansiedade ali contidas:
Bairro quase no coração da cidade, curioso por mais de um aspecto. Muito baixo e comprimido entre as vertentes e contrafortes de Santa Teresa e a cinta de colinas graníticas – Providência, Pinto e Nheco – ainda hoje as chuvas copiosas do estio teimam em encontrar depósito naquela bacia, transformando as vias públicas em regatos barrentos […] O velho “aterrado”, que conheceu atribulações de fidalgos em caminho do beija-mão de D. João VI, é hoje o Mangue, com asfalto e meios-fios; mas, de quando em quando, manhosamente, o canal enche desde que o céu queira, para lembrar as suas origens aos que passam por elas nos bondes e automóveis. 
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A Cidade Nova não teve tempo de acabar de levantar-se do charco que era; não lhe deram tempo para que as águas trouxessem das alturas as quantidades necessárias de sedimento; mas ficou sendo o depósito dos detritos da cidade nascente; das raças que nos vão povoando e foram trazidas para estas plagas pelos negreiros, pelos navios de imigrantes, a força e a vontade. A miséria uniu-as ou acamou-as ali; e elas afloraram com evidência. Ela desfez muito sonho que partiu da Itália e Portugal em busca de riqueza e, por contrapeso, muita fortuna se fez ali, para continuar a alimentar e excitar esses sonhos. As mesmas razões que levaram a população de cor, livre, a ir procurá-la, há 60 anos, levou também a população branca necessitada, de imigrantes e seus descendentes, a ir habitá-la também.
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Em geral, era, e ainda é, a população de cor, composta por gente de fracos meios econômicos, que vive de pequenos empregos; tem, portanto, que procurar habitação barata, nas proximidades do lugar onde trabalha e veio dai a sua procura por cercanias do aterrado; desde, porém, que a ela vieram se juntar os imigrantes italianos ou de outras procedências, vivendo de pequenos ofícios, pelas mesmas razões eles a procuravam.
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É de ver aquelas ruas pobres, com aquelas linhas de rótulas discretas em casas tão frágeis, dando a impressão que vão desmoronar-se, mas, de tal modo, umas se apóiam nas outras, que duram anos, e constituem um bom emprego de capital. Porque não são tão baratos assim aqueles casebres e a pontualidade no pagamento é regra geral. A não ser aos domingos, a Cidade Nova é sorumbática e cismadora, entre as suas montanhas e com a sua mediocridade burguesa. (BARRETO, Lima. Numa e ninfa. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Brasileira Ltda., 1950, pp. 60-61)

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CLIQUE PARA AMPLIAR. Trecho da Cidade Nova com destaque para o canal do mangue (à esquerda), a Praça Onze (à direita) e a Escola Benjamin Constant, onde ficava a famosa Balança (destaque em vermelho).

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Integrado ao norte da Cidade Nova encontra-se o Estácio. Bairro pequeno, igualmente povoado por gente humilde remanescente da expulsão do centro da cidade pelo bota-abaixo do prefeito Pereira Passos em 1903. Apenas uma parte era zona residencial para a classe média. Não era bairro aprazível, tanto que nele foi construída a penitenciária da cidade. Era, sim, o centro de convergência do transporte urbano, especialmente o tráfego de bonde que atendia a zona norte. Pela proximidade e facilidade de condução aos locais de trabalho, em sua maioria oficinas do centro da cidade e fábricas em São Cristóvão, Vila Isabel e Tijuca, era ideal para moradia da classe mais baixa. Muitos dos que não trabalhavam nessas atividades “tiravam areia do rio”, ou seja, cavavam o rio Maracanã, retirando areia para a construção civil.
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O Estácio era limitado pela concentração de judeus nas proximidades e em volta da Praça Onze, pelas casas de obrigação das seitas africanas, com predominância nas ruas Visconde de Itaúna e Senador Euzébio pela Cidade Nova, pela zona do baixo meretrício no Mangue, e era presidido pelo morro de São Carlos.

O Largo do Estácio era o centro do bairro. Nele estavam a Escola Normal onde se formavam as professoras para as escolas públicas municipais e as principais casas de comercio. Ali se reuniam os moradores em busca de diversão. Nas esquinas da base do morro de São Carlos muitos se divertiam em rodas de batucada e capoeira tão famosas como as do largo de Catumbi.

O alto do morro era lugar de samba, onde pontificavam os baianos das casas da Tia Ciata e das outras mães de santo, todas baianas também. No Estácio não havia nenhum grupo organizado. Nos botequins, alguns faziam música para consumo do grupo ao qual pertenciam, especialmente os freqüentadores do Bar Apolo e do Café do Compadre, este na esquina da rua Pereira Franco.

A, meio caminho entre o Campo de Santana e o Estácio, na antiga zona pantanosa dos alagados de São Diogo e muito afastado da cidades estava o Rocio Pequeno. Dava-se o nome de rocio a todo campo de utilidade pública. Sua serventia era predominantemente para pastagem de animais, coradouro de roupa para lavadeiras e feira livre em dias determinados da semana.

Desde o início do século XVIII, o Rocio Pequeno serviu como local de assentamento para os “infames pela raça ou religião: degredados, ciganos e judeus”.

Os degredados gradativamente fundiram-se com a população urbana. Os ciganos, deportados de Portugal, inicialmente abrigados em barracas, em pouco tempo tornaram-se mercadores de escravos. Compravam-nos na liquidação de sobras do mercado do Valongo para vender aos comerciantes que os utilizavam como negros de ganho. Enriqueceram dominando esse comércio e passaram a habitar casas entre o Rocio Pequeno e o Campo de Santana. A partir de 1821 se concentraram na rua que começava do outro lado do Campo, em direção ao Rocio Grande (hoje praça Tiradentes), logo conhecida como Rua dos Ciganos, atualmente da Constituição. Os judeus, provavelmente por suas atividades sociais e religiosas, foram os únicos a permanecerem no Rocio Pequeno até os anos 1940.

Zona do Mangue, região do baixo meretrício.
Desde o século XVIII encontravam-se, em meio aos “infames” desse Rocio, escravas de ganho, negras e mulatas que se prostituíam para benefício dos senhores seus proprietárias. No século XIX, além da concentração de escravas prostituídas do Rocio Pequeno, já existiam definidas várias zonas de baixa prostituição.
A mais conhecida, desde 1814, era um beco que começava no Campo de Santana e se estendia até o morro do Senado, denominado Beco da Luxúria ou da Pouca Vergonha (atual Rua Vinte de Abril). As outras zonas estendiam-se por boa parte das ruas dos Ciganos (da Constituição), do Sabão (General Câmara), Nova do Conde (dela, uma parte é a atual Visconde do Rio Branco) e na Espírito Santo (hoje Pedro I).
Com algumas variações de local, essas concentrações de baixa prostituição perduraram até o século XX, quando se fixaram na Cidade Nova com a denominação popular de zona do Mangue.
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Fonte: Samba de Sambar do Estácio – 1928 a 1931. Humberto Franchesci. Editora IMS. 2010.
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