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Samba de Sambar do Estácio: Pequena África

, Leituras

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No final do século XIX, um quadrilátero localizado no limite norte da cidade do Rio de Janeiro formou o que veio a se chamar Pequena África, devido à grande concentração de ex-escravos ali surgida logo após a abolição da escravatura. Esse enorme retângulo partia das margens do Campo de Santana, ultrapassava a rua das Flores (atual de Santana), onde começava a Cidade Nova, e terminava nos limites do bairro do Estácio.
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Os ângulos desse quadrilátero continham, na parte mais próxima ao Campo de Santana, o principal dos dois impérios do Divino existentes na cidade. Este, permanente, constituído por vasta varanda de pedra e cal na lateral da Igreja de Santana, pertencia Irmandade do Divino Espírito Santo, então existente onde hoje se ergue a Estação D. Pedro II da Estrada de ferro Central do Brasil. O outro, localizado próximo à igreja da Lapa do Desterro, originalmente também de pedra e cal, foi posteriormente demolido e substituído por uma varanda de madeira, montada e desmontada a cada ano, na lateral da igreja.
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Segundo descrição de Câmara Cascudo, o imperador do Divino era um menino de dez a 12 anos, vestido de casaca de veludo verde e manto escarlate, calção, meias de seda, sapatos afivelados, com coroa e cetro, tendo ao peito o refulgente emblema do Espírito Santo. A tradição dava como prerrogativa ao imperador-menino o poder de soltar um preso da cadeia pública.
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Em determinadas ocasiões, o imperador podia ser um adulto, geralmente uma pessoa abastada da localidade, “fazendo prodigalidades para eclipsar o antecessor”. Câmara Cascudo ainda se refere à popularidade da folia do Divino, ao afirmar:
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De sua popularidade basta lembrar que o título de “Imperador” foi escolhido pelo ministro José Bonifácio, porque o povo estava mais habituado a aclamar o imperador do Divino que o nome do rei. (CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: INL, 1954, p. 236)

 

Na direção contrária ao Campo, vindo desde a base do morro da Providência até o final da Rua Senador Pompeu, ou popularmente Rua do Peu (antiga Príncipe dos Cajueiros), onde atualmente começa o túnel João Ricardo, encontrava-se o Cabeça de Porco, o maior cortiço da cidade. O nome devia-se à imagem de uma cabeça de porco, esculpida em relevo, encimada na entrada. O Cabeça de Porco abrigava, em centenas de cubículos, uma população de mais de 4 mil pessoas vivendo em extrema miséria.
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Em 1893, sob a alegação de ter entre seus moradores perigosos malandros e capoeiras o Cabeça de Porco foi arrasado sob o comando pessoal do então prefeito, o “general” Barata Ribeiro, à frente de unidades de artilharia do exército. Sob a mesma alegação também foram arrasados cortiços menores na rua Barão de São Félix (antiga Princesa dos Cajueiros), no Mangue e na Saúde.
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No local onde existiu o Cabeça de Porco, bem próximo de onde hoje está a gare D. Pedro II da Estrada de Ferro Central do Brasil, foi armado o circo de João Apóstolo. Logo transformado em Circo Spinelli, em seguida transferiu-se para as proximidades do largo do Matadouro (hoje, praça da Bandeira), onde se exibia o palhaço e cantor Eduardo das Neves. Nas suas apresentações, cantava com o coro dos meninos chefiados por João Machado Queres, o futuro João da Baiana, e Ernesto Maria dos Santos, desde essa época o Donga. João da Baiana, em depoimento, explicou sua participação:
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Em 1902, nós acompanhávamos Eduardo das Neves no Circo Spinelli. Eduardo era o palhaço e eu era o chefe dos garotos que respondiam ao “hoje tem marmelada?” com o “tem, sim, senhor”. (Depoimento a José Ramos Tinhorão em 17/07/1971). Ao ser perguntado se ganhava por mês, respondeu:
Não era por mês, era por dia. Dava, só para mim, cerca de 1.100 OU 1.200 réis. Para os outros garotos, nós dávamos 300 ou 400 réis. (Idem)

 

O coração da Pequena África estava na Praça Onze. Um retângulo entre as ruas Visconde de Atina e Senador Euzébio, fechado pelas ruas de Santana e Marquês de Pombal. O centro da praça, cercado de casuarinas, ostentava um chafariz projetado por Grandjean de Montigny, atualmente no Alto da Boa Vista. Os alagados, em sua volta, já não mais existiam desde a segunda metade do século XIX. Nesse aterrado, em 1859, o barão de Mauá abriu e estruturou o canal do Mangue para atender à sua fábrica de gás recentemente montada.
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O retorno das tropas sobreviventes do vergonhoso e humilhante episódio da chamada revolta de Canudos, somado ao remanescente das de outras escaramuças do início da República, obrigou o governo a um “gesto de gratidão a esses heróis”: cada um receberia um lote de terra no tempo devido. Por muito tempo esses “heróis” permaneceram acampados na encosta do morro da Providência, próximo aos fundos do quartel-general da Praça da República. A promessa jamais foi cumprida.
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Coincidindo com a era do “Rio civiliza-se” e seu consequente bota – abaixo, esses ex-soldados-heróis e suas mulheres trazidas do Arraial de Canudos tiveram que se valer dos restos da demolição de casarões do centro da cidade para construir barracos feitos de madeira e cobertos de zinco, que os abrigavam nas encostas dos morros do Castelo, de Santo Antônio e, principalmente, no reduto de todos eles, o da Providência.
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O morro da Providência ficou conhecido como morro da Favela. Preito de homenagem e lembrança das mulheres desses “heróis” ao seu local de origem na região de Canudos, onde existia grande quantidade de arbustos com essa denominação. Esses “heróis” supunham-se garantidos quanto à estabilidade de suas precárias moradias pelo decreto do prefeito Pereira Passos, em 1903, de que não eram permitidos barracos, “salvo nos morros que ainda não tiveram habitações”. O decreto soava como um convite para que se desestimulasse a manutenção dos cortiços. O termo favela generalizou-se para todos os casebres de madeira e zinco que, com a miséria crescente, alastraram-se pelos morros da cidade.

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Com a destruição da economia do Império, decorrente do endividamento externo do governo ao capital inglês, originado em razão da Guerra do Paraguai, e pelo desequilíbrio da economia interna resultante da Abolição da escravatura, houve forte transformação no padrão de serviço doméstico estruturado no braço escravo. Tornou-se impossível manter os enormes casarões existentes na cidade, nem sempre residência principal. A maioria deles era usada apenas para temporada anual, fosse por necessidade da política ou simplesmente para recreio.
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Grande parte da nobreza brasileira estava, direta ou indiretamente, ligada ao lucro do tráfico negreiro. Os bancos eram poucos e inseguros. Tradicionalmente, a forma prudente de entesourar riqueza, além de objetos de prata, era a compra de terreno e de imóvel urbano. Havia ruas inteiras nas mãos de poucas pessoas, todas com algum título de nobreza. A perda do braço escravo e a decorrente mudança de situação financeira obrigaram a que muitas dessas pessoas a se desfazer de seus casarões.
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A nova estrutura da bolsa de valores, criada no início da República, e a febre de especulação financeira, gerando o que veio a se chamar de encilhamento, encarregaram-se de destruir o resto. Mentirosa alegação oficial atribuía, como razão para essas pessoas se desfazerem de suas propriedades, o fato de estarem sendo construídas habitações populares nas proximidades e o convívio tornar-se progressivamente insustentável.
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Casarões das ruas Barão de São Félix, Camerino, General Pedra e do bairro da Saúde, os mais próximos do porto, foram sendo adquiridos por exploradores de casas de cômodos e transformados em cortiços.
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